quarta-feira, 13 de março de 2024
Cumpleaños
domingo, 10 de março de 2024
Pare, olhe, escute
sábado, 2 de março de 2024
Michelet, 1979
1) Em Respiração artificial, Ricardo Piglia apresenta de forma adulterada a frase de Stephen Dedalus no segundo capítulo do Ulisses de Joyce: "A história é um pesadelo do qual tento despertar". Marcelo Maggi, o personagem de Piglia, diz: "A história é o único lugar onde encontro alívio deste pesadelo do qual tento despertar". Essa modificação reverbera no refrão (que começa na epígrafe) que Ben Lerner coloca em seu romance 10:04, "no mundo por vir tudo será precisamente como é aqui, só um pouco diferente", que, ao final, nos "Agradecimentos", Lerner esclarece que foi retirado de um livro de Agamben (A comunidade que vem) e que é geralmente atribuído a Walter Benjamin (por sua vez, referência na escrita do romance de Piglia).
2) A partir dessa primeira transformação, e como que se disseminando a partir dela, surge uma segunda nos mesmos moldes: dentro do romance Respiração artificial está um romance utópico (o mundo por vir?) de Enrique Ossorio, intitulado 1979, com uma epígrafe de Jules Michelet (é o que informa o narrador de Piglia): "Cada época sonha a anterior". A frase original de Michelet tem o sentido inverso - "cada época sonha a seguinte", "a próxima" - e foi utilizada como epígrafe por Walter Benjamin para seu ensaio "Paris, capital do século XIX".
3) No final do ensaio, Benjamin inclusive retoma a ideia de Michelet, acrescentando que não apenas toda época sonha a próxima mas que, ao sonhar, se aproxima de um despertar. No romance de Joyce a História como pesadelo pode ter duas roupagens bem específicas e circunscritas. Em primeiro lugar, pode ser o próprio cotidiano da sala de aula, Dedalus diante de alunos maldosos e desinteressados, um "pesadelo" que afasta o professor da vida que realmente importa, que está além, do lado de fora; em segundo lugar, pode ser a concepção de história do supervisor, Garrett Deasy, a quem Dedalus é obrigado a escutar porque é quem o paga (algo que de fato acontece no capítulo e que motiva, de início, o contato entre os dois personagens).
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024
George Dyer
Leio o romance experimental de Douglas A. Martin, Seu corpo figurado: três partes independentes, cada uma delas dedicada a recontar, poeticamente, a vida de três pessoas: o pintor Balthus (especialmente sua relação com Rilke), o poeta Hart Crane (suas aventuras homoeróticas no porto de Nova York) e George Dyer, o desamparado e violento alcoólatra que serviu de modelo para Francis Bacon em sua fase mais produtiva:
Você e ele iriam a Atenas, de trem, depois de barco, depois ainda mais longe.
Ele está aterrorizado com o que pode acontecer quando estiverem na água, cruzando, no meio caminho até lá, no caminho inteiro.
Você e ele estão hospedados em mais um desses hoteizinhos agradáveis, até que os escândalos recomeçam.
Pedem muito gentilmente que você se retire.
Agora você e ele brigam constantemente, perpetuamente, na frente dos fotógrafos dele, amigos, admiradores, toda a corte dele, às vezes agindo com extrema petulância. Mas tudo também vai ficando cada vez mais violento.
Douglas A. Martin, Seu corpo figurado, trad. Daniel Galera, Autêntica/A Bolha, 2011, p. 137.
Durante o funeral de Dyer em 1971, muitos de seus amigos, incluindo criminosos do East End, começaram a chorar. Quando o caixão foi baixado à sepultura, um amigo ficou emocionado e gritou "seu idiota!". Bacon permaneceu contido durante o processo, mas nos meses seguintes sofreu um colapso emocional e físico. Profundamente afetado, nos dois anos seguintes ele pintou uma série de retratos de Dyer em uma única tela e os "Trípticos Negros", cada um dos quais detalha momentos imediatamente antes e depois do suicídio de Dyer.
sábado, 24 de fevereiro de 2024
Visão, opacidade
1) Em seu livro sobre Heidegger, publicado em 1978, George Steiner destaca que o filósofo foi marcado especialmente por uma antologia de poesia expressionista intitulada Crepúsculo da Humanidade: publicada em 1921, marcou a visão de Heidegger sobre poesia e pode ter preparado sua utilização posterior de Rilke e Trakl. Tal como seus "contemporâneos expressionistas", escreve Steiner, "Heidegger viu em Dostoiévski e Van Gogh os mestres supremos da verdade espiritual, da visão das profundezas do espírito humano. Essa avaliação concordaria, por seu turno, com a teologia da crise que ele descobrira em Pascal e Kierkegaard" (As idéias de Heidegger, trad. Álvaro Cabral, Cultrix, 1982, p. 67).
2) No início dos anos 20, Brecht, que estava com vinte e dois anos de idade, começa suas anotações: de junho a setembro de 1920; de maio a setembro de 1921; de setembro de 1921 a fevereiro de 1922. São os anos de Baal, Tambores na Noite, a peça Na Selva das Cidades, A Vida de Eduardo II da Inglaterra. Surgem as baladas e os sonetos. Durante o dia, estuda medicina, lê Van Gogh e Shakespeare, Hesse e Döblin, Rimbaud e Feuerbach, Hebbel e Zaratustra. Tem amigos e mora em quartos mobiliados, vai a festas, faz viagens e tem um filho (Stefan, nascido em 3 de novembro de 1924). Surgem os conflitos com os pais, os dias agitados, o tempo em que pouca coisa acontece.
3) Quando conta a vida de Joseph Roulin, pessoa de carne e osso, sujeito histórico e personagem de Van Gogh, Pierre Michon chega a uma conclusão provisória do que faz "um grande pintor": "alguém cujos quadros devem ser vistos por todo mundo porque bizarramente, por mais opacos que pareçam, tornam as coisas mais claras, mais fáceis de compreender" (p. 41 - pensar em como Sebald, na abertura de Austerlitz, une os olhos de Wittgenstein e Jan Peter Tripp em um jogo de opacidade/esclarecimento); essa conclusão, contudo, retorna à opacidade algumas páginas depois: "Diante da garrafa revelada, o carteiro tentou saber por que Vincent era um grande pintor, e o outro explicou como pôde o que ele próprio não sabia, o que ninguém sabia, e Roulin então, que aquiescia profundamente, não avançou muito" (Senhores e criados, trad. André Telles, Record, 2010, p. 45).
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024
Nomes identificáveis
1) No último capítulo das suas Meditações pascalianas (de 1997), Pierre Bourdieu usa como exemplo o Processo de Kafka: ele, Kafka, não só usa o tempo de forma extremamente significativa (o jogo de expectativas e frustrações, planos, retomadas, desistências e arrependimentos), mas busca o "ponto de vista dos pontos de vista", como coloca Bourdieu (sua longa e tortuosa argumentação ao longo das Meditações visa a escolástica e sua insistência na separação da razão como instância última e definitiva). Bourdieu ainda acrescenta que só Proust alcançou Kafka nesse esforço de busca pela multiplicidade de pontos de vista (com efeitos bem menos trágicos, completa).
2) Algumas dezenas de páginas antes de falar de Kafka, Bourdieu apresenta uma digressão sobre Baudelaire, argumentando que a fortuna crítica enorme ao redor do autor de Flores do Mal torna difícil de perceber a radicalidade de sua poética e o modo como inventa uma nova forma de "ser artista" no interior e a partir do Literário (nesse ponto ele aproveita alguns momentos de um livro anterior, As regras da arte, de 1992). É curioso que, no centro de um trabalho de crítica à escolástica, encontramos um exemplo precisamente da meticulosidade de tal método/escola, vinda do próprio crítico (Bourdieu mostra que é preciso saber com precisão quais eram os autores imediatamente anteriores e imediatamente contemporâneos de Baudelaire, algo que se perdeu na fortuna crítica posterior).
3) Esses dois momentos das Meditações convergem em direção ao ensaio de Walter Benjamin sobre Proust, no qual ele defende justamente que a Recherche deve ser lida à luz das intrigas sociais imediatamente anteriores e imediatamente contemporâneas à escrita do ciclo romanesco (em outras palavras, Benjamin defende a importância hermenêutica da fofoca e do chisme, para usar o termo de Edgardo Cozarinsky). Recuando no tempo, o mesmo pode ser dito de Dante: Lamartine criticava A divina comédia por seu lado mundano florentino, pois, no poema, figuram muitos nomes identificáveis unicamente pelos habitantes de Florença.
quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024
Potentia gaudendi
"Se concordarmos com Marx que 'a força de trabalho não é o trabalho realmente realizado, e sim o simples potencial e habilidade para trabalhar', então será preciso dizer que qualquer humano ou animal, real ou virtual, feminino ou masculino, possui essa potencialidade masturbatória, a potentia gaudendi, o poder de produzir prazer molecular, e, portanto, possui poder produtivo sem ser consumido e esgotado no próprio processo.
Até agora conhecemos uma relação direta entre a pornificação do corpo e o grau de opressão. Na história, os corpos mais pornificados têm sido os dos animais não humanos, os das mulheres e os das crianças, o corpo racializado do escravizado, o corpo do jovem trabalhador, o corpo homossexual. Mas não há relação ontológica entre anatomia e potentia gaudendi.
É do escritor francês Michel Houellebecq o mérito por ter compreendido como construir uma fabulação distópica sobre esse novo poder do capitalismo global, que fabricou a megavadia e o megatarado. O novo sujeito hegemônico é um corpo (frequentemente codificado como masculino, branco e heterossexual) farmacopornograficamente suplementado (pelo Viagra, pela cocaína, pela pornografia etc) e consumidor de serviços sexuais pauperizados (frequentemente exercidos por corpos codificados como femininos, infantis ou racializados)"
(Paul B. Preciado, Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica, trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro com a contribuição de Verônica Daminelli Fernandes, Zahar, 2023, p. 43)